terça-feira, 27 de abril de 2010

Conto - Um Anjo Redentos - George Pacheco

UM ANJO REDENTOR

Sirenes ligadas. Homens, mulheres e crianças chorando, gemendo de dor. Um chei-o forte de éter. Em um hospital vê-se o que quer e o que não quer. Se ao menos houvesse muitos médicos para atendê-los... Não, não havia.

Adametropos trabalhava há quase vinte anos como enfermeiro. Muitos pacientes já haviam sido cuidados por ele. Suas mãos precisas efetuaram uma centena de curativos, aplicaram injeções mais ainda. Não era casado, não tinha filhos. Quase uma vida inteira dedicada a pessoas desconhecidas.

Sirenes ligadas, gente chorando... Já estava acostumado com isso. Essa profissão não é para qualquer um. É preciso gostar muito de ajudar as pessoas. E não se importar em ver sangue.

Em alguns dias os corredores ficavam até vazios, mas hoje... Haviam macas espalhadas, alguns pacientes que estavam em pé, outros sentados em cadeiras mal conservadas e tomando soro.

Adametropos cuidava de uma senhora, paciente terminal de câncer. Antigamente não se podia falar nem no nome dessa doença. Falavam “aquela doença ruim”. Estava quase gritando de dor. Seu corpo magro se contorcia na cama, desarrumando os lençóis que a cobriam. Não havia nenhum parente com ela. Acontece às vezes. Algumas pessoas são abandonadas pela família e isso é muito triste.

– Ah... Está doendo! Meu Deus me ajuda! – disse Dona Diva, com os olhos cheios de lágrimas, voltados para o enfermeiro que entrava no quarto agora.

– Calma Dona Diva... – disse ele com sua voz grave. Era chamado de locutor de cabaré por disso.
– Me ajuda moço... – disse ela quase sem forças.

– Isso vai deixar a senhora melhor... – disse ele aplicando uma injeção na garrafa de soro. Quase que instantaneamente a mulher foi se aquietando até dormir. Seu rosto ain-da estava molhado de lágrimas e Adametropos enxugou-as com as mãos.

Seus olhos marejaram. Era difícil se comover com os pacientes. Na verdade só havia acontecido nos seus primeiros plantões. Talvez fosse porque ela lembrava sua mãe. Ah sua mãe! Que saudades! Havia partido há tanto tempo... Não pôde ajudar. Morreu de re-pente e ninguém nunca soube o que havia sido. Por isso decidiu ser enfermeiro. Precisava ajudar os outros. Enquanto trocava de roupa pensava em como ajudaria mais pessoas, fora de seus plantões.

Foi para casa, tomou um banho e deitou-se um bocado, estava exausto. Quando acordou eram quase três horas da tarde. Levantou, lavou o rosto e comeu alguma coisa, assistindo televisão.

“Em pesquisa recentemente divulgada pelo governo, houve um aumento de trinta por cento da população de rua...”. – disse o jornalista. Sim! Os mendigos precisavam de ajuda. Aliás, já havia atendido a muitos no hospital.

Levou o prato até a pia e começou a destampar as panelas. Arrumou alguns pratos, tapando com outros e amarrando com panos de prato. Foi ter com os mendigos, lembrava que perto do hospital tinha visto alguns. A pesquisa do governo estava certa. Devia haver umas duas famílias inteiras por lá e muitas crianças. O que trouxe provavelmente não ia dar. Mas os mendigos dividiram tudo e quase que sobra. Emocionou-se novamente. Talvez fosse a primeira refeição deles e comeram como se fosse a última. Voltaria lá mais tarde.

No outro dia, ao chegar ao hospital recebeu a notícia. Dona Diva tinha partido, ainda pela manhã de ontem. Era apenas mais uma. Trocou de roupa e foi passando no leito de cada um. No setor de queimados, havia uns dez pacientes. Atendeu primeiro à Paloma, uma menininha de cinco anos. Sua mãe estava aquecendo o leite no fogão e deixou distraidamente a alça do canecão voltada para fora. A menina puxou-o derramado a bebida no rosto e no peito. Estava praticamente desfigurada.

– Bom dia Palominha... – disse ele se aproximando.

– Bom dia Sr. Tropis! – disse ela, que sorria, mesmo na dor.

– Então, como é que foi a noite?

– Eu senti um pouco de frio. Mas aí, minha mãe me cobriu e eu suei muito. – disse a menina arregalando um dos olhos. O outro, tinha a pele retorcida pela queimadura. A mãe estava sentada ao lado tentando segurar o choro, para que a menina não visse. Não pôde, e saiu para chorar no corredor.

– Vou te dar um remédio para você melhorar, está bem? – disse o locutor de cabaré.

– Cadê mamãe? – perguntou a menina voltando-se para a porta.

– Deve ter ido ao banheiro... – disse ele com jeito.

Deu o remédio à menina e partiu para os outros pacientes. Saiu dali e foi para a ortopedia. Também estava lotado. Ali havia acidentes de todos os tipos. Um homem havia caído da laje. Três mulheres haviam sido atropeladas no ponto de ônibus. Um rapaz havia batido de carro e tinha sorte de estar ali. Sua namorada estava sem o cinto de segurança e na pancada tinha sido arremessada pelo pára brisa dianteiro, indo parar a uns cinco metros do sinistro. Ele talvez ficasse paraplégico.

– Hei Adametropos! – Teu time é muito ruim mesmo, hein? – disse Sr. Carlinhos, um senhor de uns setenta anos. Tinha quebrado a bacia quando escorregou no banheiro de casa. Viúvo, morava com o filho.

– Ruim é o seu! – redarguiu o enfermeiro.

– Esse ano vou ter o prazer de ver o Vasco cair para a segunda divisão! – disse o velho com um radinho de pilha sobre o colo.

– E o seu está muito bem, não é? – disse ele trocando o soro do velho.

– O Fluminense? Eu nem vejo vocês pelo retrovisor! Por que é que você não fica em casa todo dia? Assim você evita as chacotas e eu sou cuidado só por aquela enfermeira gostosa que estava aqui ontem...

– A Neide? Da fruta que o senhor gosta ela come até o caroço! – disse ele atenden-do outros pacientes.

– Isso é porque ela não me conheceu ainda. Deixa comigo que eu dou um jeito nela!

E foi assim por todo o dia. Alguns choravam, outros faziam piada. Nada demais até as duas da madrugada. Chegou um rapaz que havia batido de moto. Estava todo ensangüentado, dando golfadas de sangue. No lugar da perna direita tinha um monte de carne retorcido com alguns cacos de osso. Foi direto para o CTI, mas já era tarde, seu coração já estava parado. Já estava quase amanhecendo, mas de lá não se podia ouvir o canto dos pássaros. Só gemidos e lágrimas.

Outro plantão exaustivo. Saiu do hospital e foi à padaria do outro lado da rua fazer seu desjejum. Alguns enfermeiros e parentes de internados faziam suas refeições ali, e levavam guloseimas escondido para os pacientes. Adametropos adoçava seu café com leite, enquanto os outros prestavam atenção no noticiário. O jornalista anunciava em tom austero informações sobre uma chacina.

“A polícia ainda investiga a chacina ocorrida na madrugada de segunda feira, em uma das ruas do centro da cidade. Foram dezoito mortos, entre homens, mulheres e crianças. Uma mulher, que não quis ser identificada, disse que foram muitos disparos de arma de fogo, por volta de uma hora da manhã. Ouviu muitos passos, mas não soube se eram dos assassinos ou dos mendigos que corriam desesperados.”

– Que absurdo! – disse a moça que limpava o balcão.

– Fiquei sabendo que foi aqui pertinho... – disse um cliente.

– Que Deus tenha piedade dessas almas... – disse Adametropos com lágrimas nos olhos. Estava sensível a este tipo de coisas nos últimos tempos.

A conversa ali na padaria girou em torno deste assunto. As mortes, a insegurança da população. Os hospitais lotados, a falta de preocupação do governo com o básico, saúde, segurança e educação. A sociedade estava à beira do caos.

O enfermeiro Adametropos saiu da padaria e caminhou até o ponto de ônibus. A rua onde aconteceu a chacina ficava no caminho deste. Passou em frente e ficou olhando na entrada do beco. Havia marcas de tiro nas paredes. A imagem das pessoas correndo lhe veio à cabeça. Lembrou-se de quando se fartavam com a comida que havia trago. Aquela havia sido a última refeição deles mesmo...

Chegou à porta de casa, tirou os sapatos, batendo um no outro para tirar a poeira. Entrou, abriu a camisa e foi pegar uma cerveja gelada. Era um dia quente. Foi para a sala e ligou a televisão. Sentou-se no sofá, esticou os pés na mesa de centro e degustou a bebida. Deixou escorrer algumas gotas pelo queixo, indo pingar em seu peito, cheio de cabelos brancos. Estava ficando velho.

Todos os canais falavam sobre o acontecido. Não adiantava mudar. No meio de programas de culinária abriam um espaço só para falar do assunto. Eles não demorariam a encontrar o culpado, ele sabia.

Em um dos canais, falavam sobre o hospital em que ele trabalhava.

“O Hospital Nossa Senhora das Dores está sendo investigado uma série de mortes. Muitos pacientes morreram mesmo tendo uma melhora no quadro. A senhora Mariluce Tavares, mãe de uma paciente, diz que sua filha estava bem, mas começou a se sentir mal depois de ter ingerido um comprimido, dado por um enfermeiro. – Eu tive que sair, por estar me sentido mal e quando voltei o enfermeiro tinha medicado minha filha. Ela teve um pouco de febre na noite anterior, mas não era nada demais. Em algumas horas ela morreu. Foi horrível. Nada vai trazer minha filha de volta! – disse a mulher aos prantos. A polícia investiga o envolvimento do enfermeiro nas mortes...”.

Ouviu o som de pisadas fortes na entrada de sua casa. Bateram a porta com força. Eram eles.

– Adametropos Ribeiro! Abra a porta, é a polícia! – gritaram. Haviam encontrado-o.

Adametropos estava farto de tanta aflição, tanta dor. Não resistiu a anos assistindo aquilo como coadjuvante. Embora curassem alguns, outros chegavam, com os mesmos sintomas, as mesmas doenças. O mundo era uma fábrica de doentes, acidentados, famintos e desesperados em linha de produção. Não, ele precisava fazer algo. E fez. Salvou dezenas de almas de tanto sofrimento, tanta angústia. Para onde foram, não teriam fome nem sede, nem dor. Uma terra onde corre leite e mel.

Os policiais chutaram a porta com mais força. Adametropos pegou o revólver que estava sobre a mesa de centro, tomou um último gole de sua cerveja e abriu a boca, pondo o revólver dentro. Apertou o gatilho no momento em que conseguiram arrombar a porta. Encontraram o corpo caído sobre o sofá e o sangue que escorria molhando sua roupa branca.

Mas vejam só. Nem todos que vestem branco são anjos...

George dos Santos Pacheco


George dos Santos Pacheco nasceu em Nova Friburgo, na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro em 07 de outubro de 1981. Saudosista dos anos 80, geração a que pertence, sempre gostou de filmes, música e livros. Apesar disso não lia tanto, tornado-se um hábito quando se casou em 2003, pois sua esposa também é apaixonada por livros.


Assistia a uma entrevista em um canal de TV, num programa de debates. Tema: Literatura. “Todo mundo é capaz de escrever um livro” – diziam. –Eu? George Pacheco escrevendo um livro? – pensava. Sim, é possível. Começou a escrever e não parou mais. Hoje se considera um escritor compulsivo. Faz parte da nova safra de escritores do país, fazendo sua estréia com O Fantasma do Mare Dei, a ser lançado ainda em 2010, pela Editora Multifoco. Participa também da Coletânea de Contos Policiais Assassinos S/A Vol. II, também da Editora Multifoco, lançada em 03 de abril de 2010. Publica contos e crônicas em diversos sites, inclusive em seu blog, revistapacheco.blogspot.com.

Contatos pelo e-mail pacheconetuno@oi.com.br.


1 comentários:

a fantasista disse...

Nossa, que conto forte, comovente, realista! Esse conto é um excelente choque de realidade de que precisamos de vez em quando para não corrermos o risco de a fantasia não nos deixar cegos e insensíveis.

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